quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Mudança Climática e conflito social estão associados? artigo de Sérgio Abranches


Eventos climáticos extremos podem ter tido efeito importante nos levantes populares no Oriente Médio e Norte da África? A mudança climática já está afetando as relações sociais?

A questão pode parecer uma dessas vias forçadas para alertar sobre a mudança climática. Mas não é. É uma preocupação relevante e essa conexão já vem sendo estudada por cientistas das mais diversas áreas, climatologistas, ecologistas, sociólogos, economistas. A pergunta é mais complexa do que ela aparenta à primeira vista. Ela indaga sobre duas relações nada triviais: entre eventos climáticos extremos e mudança climática e entre anomalias climáticas e conflito social.


Os cientistas resistem sempre a atribuir a emergência de eventos climáticos extremos específicos à mudança climática. Argumentam, com razão, que não há base científica para associar um evento em particular ao fenômeno global e de longo prazo da mudança climática. Mas o climatologista Kevin Trenberth, diretor da Seção de Análise Climática do Centro Nacional para Pesquisa Atmosférica, nos Estados Unidos, defendeu recentemente uma visão diferente desse problema, conhecido na ciência climática como “o problema da atribuição”. Em entrevista exclusiva ao editor do blog Climate Progress, o físico Joseph Romm, Trenberth disse que:

Os cientistas sempre começam com a afirmação de que não se pode atribuir um evento isolado à mudança climática. Mas ela tem uma influência sistemática sobre todos esses eventos climáticos atuais, segundo ele, por causa do fato de que há mais vapor d’água circulando na atmosfera do que se tinha, digamos, trinta anos atrás. É uma quantidade extra de 4% de vapor d’água. Ele aumenta a força das tempestades, dá mais umidade para essas tempestades e é ruim que o público não veja isto como uma manifestação da mudança climática. A perspectiva é que esse tipo de coisa só aumentará e piorará no futuro.

A quantidade de gases estufa na atmosfera, segundo a maioria dos cientistas, já tem um efeito de aceleração do aquecimento da Terra. Portanto, a mudança climática decorrente deve ser vista como um processo em curso com tendência de agravamento ao longo do tempo. Ou seja, é de longo prazo, mas as coisas não acontecem todas no futuro de uma vez só. Vão acontecendo progressivamente, com aumento de frequência e intensidade.

E qual a relação com os fatos no Oriente Médio e na África do Norte?

Tivemos um período atípico de grande quantidade de eventos climáticos extremos em 2010 e no início deste ano. Secas, enchentes, ondas de calor e frio, tempestades intensas, nevascas, queimadas. Esses eventos afetaram negativamente a produção agrícola mundial em todas as partes do mundo: os casos mais exemplares foram no Casaquistão, na Rússia, no Canadá, na Austrália, nos Estados Unidos, na China e no Brasil. O resultado foi uma forte alta dos preços internacionais das commodities agrícolas e inflação de preços de alimentos. Uma inflação climática.

O blog Climate Progress organizou uma série de referências de cientistas e da imprensa a essas relações. Entre elas, estudo dos economistas Rabah Arezki, do FMI, e Markus Brückner, da Universidade de Adelaide na Austrália. Eles estudaram o efeito de variações nos preços internacionais de alimentos sobre as instituições democráticas e conflitos internos em mais de 120 países, entre 1970 e 2007. Essa análise mostra que existe uma clara relação para os países de baixa renda: observa-se a deterioração das instituições democráticas e o aumento da incidência de conflitos de rua, demonstrações anti-governo, e movimentos de massa.

Por que nos países de baixa renda? Nos países de renda alta essa relação não é significativa. Porque quanto menor a renda do país, maior a participação dos alimentos no orçamento doméstico e, portanto, maior a sensibilidade da população a elevações fortes do preço da comida.

Estudos históricos mostram que há relação entre mudança climática e colapso social. Quebras de safra e consequente elevação dos preços de comida são causas frequentes de levantes populares e revoluções na história da sociedade moderna e contemporânea. A história do próprio Egito registra casos históricos de conflitos associados ao preços dos grãos (infelizmente não tenho cópia digital deste artigo). Na Índia, também foram muitos os episódios. O mais notável talvez tenha sido a “revolta dos grãos” de 1918, provocada por desabastecimento e elevação de preços dos grãos resultante de monções com chuvas excepcionalmente fracas.

Em vários desses episódios históricos a relação era direta: a elevação dos preços dos alimentos causava a revolta. No caso atual, as causas são outras. Para entender o que se passa no Egito, por exemplo, é preciso distinguir entre o que causa o descontentamento profundo e o que detona a revolta. O que causou o descontentamento foi a própria tirania. Um governo autocrático, um ditador no poder por 30 anos, uma administração corrupta. Repressão, censura, prisões arbitrárias, tortura. No plano social, muita pobreza, imensa desigualdade de renda e de riqueza, falta de perspectiva de mobilidade social para os jovens. Nos últimos anos houve várias manifestações de protesto, todas duramente reprimidas, mas nenhuma do porte da revolta de massas que começou no dia 25.

O que detona o levante das massas? Uma conjuntura, isto é, uma convergência de fatores, antes dissociados, que se encontram e formam “a gota d’água”, provocam a virada, o tipping point, que levam um protesto como outros inúmeros se transformar em explosão de descontentamento geral, em revolta incontrolável e espontânea da massa.

No Egito houve fatores econômicos, políticos e aceleradores importantes que criaram essa conjuntura. O econômico foi a elevação dos preços dos alimentos, que atingiu duramente as famílias mais pobres. A subida dos preços do petróleo, moradia e educação, bateu no orçamento da classe média. Esse choque de preços ocorreu em uma economia debilitada, na qual o desemprego de jovens é muito alto. O desemprego agrava uma situação de baixa mobilidade social, anulando as perspectivas de futuro dos jovens. Em alguns casos, jovens com qualificação sofrem descenso social, sendo forçados a trabalhar em setores de baixa qualificação.

O desespero dos jovens se transmite facilmente para os pais e famílias.

O fator político foi a notícia de que o filho de Hosni Mubarak, Gamal Mubarak, seria seu sucessor, provavelmente já como candidato nas eleições de cartas marcadas previstas para setembro. A possibilidade de uma dinastia Mubarak provocou enorme rejeição, em um país de passado dinástico.

O quadro sócio-econômico no Egito não é muito diferente do que se observa nos outros países. Na Tunísia, no Sudão, mesmo na Arábia Saudita, há tirania, muita pobreza, desigualdade de renda e riqueza, desemprego de jovens e elevação de preços de alimentos. Ouvi recentemente entrevista de um dos príncipes sauditas, na CNN, falando que a situação em seu país é diferente, mas que há, realmente, insatisfação com o aumento de preços dos alimentos e da moradia. O governo aumentou os salários para que pudessem absorver o custo adicional. A evidência mostra que subsídios e aumentos salariais para compensar os efeitos da inflação alimentar têm efeito temporário e acabam por realimentar os preços.

No Egito, o aumento dos preços dos alimentos foi muito forte, como se vê no gráfico abaixo


Os preços dos alimentos subiram 40% e os de moradia e educação, mais de 10%. Os pobres são sensíveis à inflação nos alimentos e na moradia. A classe média à inflação na educação, na moradia e nos combustíveis.

O que acelerou a revolta e permitiu que se transformasse em um movimento de massa, muito rapidamente? As mídias e redes sociais e o efeito-demonstração do levante na Tunísia, que se propagou por essas vias digitais. É evidente que as mídias e redes sociais não fazem revoluções. Elas são uma revolução na forma como nos comunicamos e trocamos informação. Nisso têm sido revolucionárias. Mas, na sociologia dos conflitos sociais seu papel é de acelerador e transmissor, permitindo, por exemplo, o contágio inicial, que depois passa a se dar por contato físico, nas ruas e nas praças, e na propagação de eventos que acabam tendo o efeito de aumentar a propensão à ação.

Além disso, podem ter o efeito de prolongar o contágio. A sociologia já decifrou como terminam os processos por contágio, como os arrastões, por exemplo: quando não há mais pessoas a contagiar e a cadeia se quebra. As redes e mídias sociais – no caso do Egito principalmente o SMS – trazem mais pessoas para o movimento e realimentam o contágio.

Não é por acaso que essas revoltas ocupam as ruas e praças das cidades. O meio urbano é muito mais propício ao contágio das massas. O crescimento da população com acesso à telefonia celular dá o principal instrumento de contágio. Veja os gráficos abaixo para o Egito e a Tunísia.



Mas a internet teve importante papel de manter o mundo informado sobre o que se passava no Egito, provavelmente evitando um banho de sangue, e na comunicação entre os egípcios. E por isso o governo fechou o acesso à Web.

Nada é simples nesse processo. Estamos falando da convergência de processos complexos no sistema climático, no sistema social e na sociedade global. Essa convergência só aumentará nos próximos anos e décadas. Viveremos mais turbulência climática e social, no meio de uma revolução científica e tecnológica sem precedentes.

Um comentário:

  1. UMA VERDADE INCONVENIENTE


    A Comissão Mista - Deputados e Senadores - que trata do tema "Mudanças Climáticas" volta a seus trabalhos.

    Um bom momento para destacar - o que possivelmente os membros da Comissão já saibam, mas nunca é demais relembrar - que não basta focar soluções para o enfrentamento da crise ambiental que vem preocupando a todos, pelo menos os de bom senso.

    É importante destacar que nessa Comissão o Espírito Santo está muito bem representado na pessoa do Senador Ricardo Ferraço, que já deixou muito bem clara as suas preocupações com a temática ambiental, a quem já tive o cuidado de enviar este mesmo tipo de consideração.

    Mas, efetivamente, onde reside a nossa preocupação? Ela está na base de toda a discussão, ou seja, como assegurar sucesso às ações recomendadas pela Comissão se, tudo leva a crer, a sociedade - apesar de se dizer conscientizada pela problemática das Mudanças Climáticas, ainda não mostra convicção a respeito do que deve ser feito (em conjunto ou isoladamente) de modo a contribuir para a eficácia das ações sugeridas.

    Não são muitas as pesquisas nesse sentido - estamos falando de pesquisas que acoplada à avaliação do nível de envolvimento da sociedade com a temática, também pesquisa saber o que a sociedade efetivamente "percebe" de tudo que é falado a respeito - pois as que apenas evidenciam o envolvimento da sociedade não podem ser consideradas como resposta conclusiva do nível de envolvimento da sociedade com a solução desse grave problema ambiental.

    Deste modo, infelizmente, as coisas - na teoria - ficam resolvidas. Há, porém, um problema a ser resolvido na área prática: a sociedade está preparada para assumir a sua responsabilidade (que não será pouca) na solução do problema?

    Certamente, não estamos pensando em uma sociedade totalmente politizada no sentido de assumir a plenitude da discussão do processo das Mudanças Climáticas. Como pensar nesta utopia se até os "iniciados" nessa discussão ainda se vem diante de prós e contras. Obviamente, o que se tem como objetivo é uma sociedade minimamente informada (o necessário), em condições de entender "qual é o problema", "as soluções pretendidas", bem como "o ônus a ser pego pela sociedade no processo de implantação de tais soluções ". Parece um conhecimento mínimo, mas efetivamente, não é.

    A nosso ver, um dos grandes focos de atenção da Comissão Mista, independentemente dos muitos outros já conhecidos, deverá ser a discussão do nível de preparo (conscientização) da sociedade brasileira frente às ações que precisam ser implantadas.

    Se pretendermos contar com a sociedade para atuar "como exército", iniciando pelos grandes centros urbanos, em relação a "Guerra das Mudanças Climáticas", no mínimo este exército precisa conhecer bem o inimigo e estar motivado a entrar na guerra, sabendo do custo que isso trará a cada um dos envolvidos.

    Porém, é bom que se diga, a mudança de paradigma não é unicamente um desafio para os políticos da Comissão Mista, mas, sem dúvida, de toda a sociedade, inclusive aquele segmento que ainda pode ter dúvidas com relação ao Aquecimento Global (causa) e as Mudanças Climáticas (efeitos); neste caso, conservadoramente, vale a adoção do Princípio da Precaução.

    Faça contato com o político que você elegeu; explicite a sua preocupação com o problema; temos que fazer uma grande corrente – todos os segmentos da sociedade (quem tem o poder do voto e àqueles que têm a condição de uso desse poder) de modo a evitar surpresas previsíveis.



    Roosevelt S. Fernandes
    Núcleo de Estudos em Percepção Ambiental / NEPA
    roosevelt@ebrnet.com.br

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